Aprendendo a se informar...

Informar, discutir e criar numa perspectiva de diálogo entre sujeitos e saberes, visando à promoção da cidadania com base na liberdade de investigação científica e na dignidade da pessoa humana. Visite também: http://clinicadotexto.wordpress.com/

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

EDUCAÇÃO BRASILEIRA E A INCLUSÃO DIGITAL EM BIBLIOTECAS


Nenhum rastro de minha primeira educação: essa multidão de preconceitos, sugados, por assim dizer, com o leite, cedo desapareceu à divina claridade da filosofia. Essa substância mole e tenra, sobre a qual o lacre do erro tão bem se gravara, hoje rasa, não conservou vestígios nem dos meus colegas, nem dos meus professores. Tive a coragem de esquecer o que tivera a fraqueza de aprender; tudo está riscado, tudo apagado, tudo extirpado até a raiz. (LA METTRIE. Système d'Epicure. In: Oeuvres philosophiques. Paris: Fayard, 1984, v. 1, p. 375)

A trava da ignorância é uma forma de colonização da inteligência e da sensibilidade que embota a emoção e a vontade de viver. Bem mais perverso, pois, é o modo de expropriação do pensamento que apaga da vida a chama, subtraindo os jovens da escola (desinteressante) e excluindo-os de sua própria História. Para colaborar, bibliotecas são fechadas na capital paulistana, enquanto o analfabetismo funcional dos brasileiros atinge níveis alarmantes.

O mais nefasto desastre causado à existência de nosso povo, não foi apenas o promovido pela escravidão, o látego e a sífilis (†), com respectivo extermínio físico da língua nativa e de seus falantes, mas algo mais sutil; não apenas o genocídio sumário da carne e dos afetos desordenados, mas do pensamento, da emoção e da vontade, apagando de sua vida os desejos, o passado e os antepassados, até ser subtraído da própria História. Manipulado e submisso, ou ficou de fora ou serviu de montaria para as retóricas e ideologias, permanecendo na escuridão da ignorância, sem história, sem passado. Ignorado e ignorante – sem acesso à educação, nem ao saber –, sua leitura de mundo se viu aprisionada a preceitos morais, vetada e limitada pela visão de mundo autoritária do colonizador.

Não se passa impunemente por quinhentos anos de analfabetismo.

O Brasil chegou à independência sem projeto educacional capaz de superar as fissuras da deculturação jesuítica que, via catequese nas tabas, prefixara o “caminho da salvação” pela propagação da fé, negação do corpo e expiação dos pecados. De instrumento para civilizar os bárbaros, a “escola” passou a ser espaço de “inclusão” das populações residuais da nossa história, sob a tutela do Estado. De lá para cá, confinado à mera transmissão de conteúdos, exames e outras exigências inibidoras da aventura de ler e conhecer o mundo, esse modelo oco “quem não reproduz é reprovado” fez da escola um espaço “desinteressante”!
Educar é preparar para o imprevisível. Salvo “portos seguros” onde a biblioteca escolar funciona como espaço aberto a experiências criativas e vividas de uso da informação, em que educadores e bibliotecários atuam como partícipes no desenvolvimento de competências informacionais e do apreço pelo ato de ler, o modelo convencional de ensino tem sido a mais pródiga fábrica de medíocres em informação. Dados à estampa, são flagrantes baixos índices de rendimento e deficiências de aprendizado, traduzidos em apatia social por total “perda de interesse”, um cenário funesto que remonta ao colonialismo sociocultural.

A novidade é a “inclusão digital” que promete acesso universal e democrático à informação, mas cada vez que se universaliza um bem, entrega-se um produto deteriorado, como se pobre não tivesse direito a produtos de qualidade razoável. Penso que a direção mais promissora à mudança qualitativa é a aprendizagem cooperativa (por projetos, oficinas, desafios ou problemas), com a possibilidade de soluções práticas para os problemas de aprendizado digital e saber em fluxo, uso de software livre etc. Educandos suportam cada vez menos acompanhar cursos uniformes que não correspondem às necessidades e à especificidade de seus trajetos de vida. E o veto cognitivo impede-os de integrar-se à cultura, de assimilar, processar e produzir novos valores. Incapaz de pensar, criar e organizar formas mais justas e dinâmicas de produção e distribuição do saber, o jovem rende-se facilmente à violência e às drogas, ou serve de montaria para ideologias míopes.

Micros a mancheias não bastam! As políticas educacionais vicárias, em doses de mandato, resultam inócuas. Costumam desdenhar a importância das bibliotecas, ora desconhecendo ora anulando intencionalmente, tratando-as como apêndice deteriorado de uma educação forjada na e pela ignorância. Biblioteca escolar é para ser vivida como espaço de aprendizagem. Se não for vivida, embora dadivosa na oferta de saber coletivo, perde a sua função.

Sem as habilidades necessárias para mover-se na algaravia informacional, como encontrar o que realmente satisfaz a busca? Quem não sabe o que procura, não reconhece quando acha! Ora, ignorar o papel da biblioteca escolar, e não integrá-la à prática educacional, impede igualmente que o bibliotecário cumpra missão maiúscula: formar jovens pensadores críticos, propensos a tomar decisões mais inteligentes e socialmente responsáveis. Sendo capaz de tornar perfeitamente acháveis os livros como os seres, alimpando as escolhas de toda suja confusão, atua como um filtro na torrente difusa de informações, ordenando a desordem, incitando a produção cooperativa e o intercâmbio de novos saberes.

A sociedade pune quem a trata com desdém. Há demanda por mudança, mas faltam iniciativas estratégicas que visem à promoção da inclusão social, e não só digital. Sem a vivência cultural da biblioteca escolar aliada às competências para aprender a se informar, o poder público pode até “zerar estatísticas”, a despeito dos que se mantêm à margem do pensar e do saber, mas, assim, deixamos apenas de ser “ignorantes” em nível local para sermos “ignorantes” na aldeia global.

Por fim, desastre mais nefasto certamente não há... Seria, sim, o fim da picada!


NOTA _____________________________

† Trazida nas naus, a sífilis, também conhecida como "mal-de-cristãos", foi a mais cruel e devastadora das epidemias e dizimou uma turba de índios; inevitavelmente, a população nativa – indene e debilitada – não resistiu a este golpe físico.

(Divulgado por Edison Luís dos Santos; publicado originalmente em Infohome (02/07/2007).

Disponível em: http://www.ofaj.com.br/textos_conteudo.php?cod=144